"Canindé hoje acordou com a fatídica notícia do falecimento de Sebastião Assis Félix, o Sebastião Raposa, 72 anos, figura folclórica que conheço desde a minha infância. Há tempos escrevi um texto sobre ele, cujo rascunho localizei e ora repasso, com alterações e adaptações, como uma espécie de homenagem aquele homem simples, sem feitos memoráveis, mas sempre lembrado. O fato ora relatado ocorreu em 1970, antes das férias do meio do ano, eu tinha 10 anos de idade, mas lembro bem do episódio, cujo desdobramento se deu exatamente na copa do mundo. Tudo aqui narrado é verdadeiro, as pessoas da época hão de lembrar.
Em 1970 o destacamento da polícia militar em Canindé era comandado por uma Major magricela já de uma certa idade que muito me faz lembrar a descrição que Euclides da Cunha faz do Coronel Moreira Cesar comandante da terceira expedição a Canudos, o temível “Treme terra”:
“O aspecto reduzia-lhe a fama, de figura diminuta, um tórax desfibrado sob pernas arqueadas em parênteses, era organicamente inapto para carreira que abraçara...”
Ao que parece, nas corporações essas camaradas desprovidos de compleição física (que no soldado é a base da coragem) buscam compensar tal deficiência com arrogância. Assim era o tal Major, sempre cercado pelos seus comandados prendia, açoitava e causava terror a sociedade.
Uma das brutalidades do Major foi mandar prender o Sebastião Raposa, por pura arrogância implicando com seus longos cabelos. Passado alguns dias ele foi solto mas teve os cabelos cortados (dizem que a faca), ficando os dois lados pelados e uma tira bem cabeluda ao meio da cabeça que ia da testa a nuca, lembrando um elmo de capacete dos centuriões romanos.
O pior é que o Sebastião foi obrigado a percorrer as ruas Canindé, por determinação do Major, seguido pelo olhar inquisidor de dois soldados que ficavam há uns 10m de distância. Por coincidência ele passou em frente ao Grupo Escolar Monsenhor Tabosa no momento em que terminava aula, então assistimos aquele espetáculo bizarro e na nossa inocência ajudamos os populares a vaiar e achincalhar a pobre vítima daquela selvageria.
O Major que era temido por todos ganhou tanta confiança na valentia que já percorria as ruas das cidades sem o seu séquito de subordinados, ao que parece ficou convicto que era um valente de verdade.
Chegou o período da copa do mundo e o Brasil brilhava a cada partida com a melhor seleção de todos os tempos. Houve uma dia que após mais um partida vitoriosa os torcedores comemoravam no Bar Canindé nº 1, o ambiente mais aristocrático da cidade. O Major adentrou ao recinto e um dos que comemoravam estendeu-lhe a mão respeitosamente e o convidou para tomar parte naquela comemoração cívica/etílica, já que ele não estava fardado.
O Major respondeu rispidamente que não pegava em mão de bêbado. O camarada sentiu-se ultrajado e ao perceber que o Major estava sozinho, largou-lhe um tabefe na cara que seu óculos voou longe. Ele apanhou o óculos e partiu indignado dizendo impropérios e foi chamar a polícia. Regressando em pouco tempo com todos os seus comandados, mas não havia mais ninguém, até os que não tinham nada a ver com o caso temiam represálias.
Assim, o Sebastião Raposa sentiu o gosto da vingança, ainda que pelas mãos alheias e o teve motivo de sobras para comemorar a vitória do Brasil . Já Major metido a valente e a moralista, apanhou na cara e foi desmoralizado por um camarada que nem era valente e nem tinha essa moral toda. A história é prodiga em mostrar a punição a que estão sempre sujeitas pessoas de gestos e atitudes estapafúrdias e grosseiras.
Ide em paz, Bastião. Segura na mão de Deus e vai, na paz da tua consciência."
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